Violência contra mulher
Violência contra mulher
Quando a Violência Não Deixa Marca e a Justiça Não Deixa Espaço: O Silêncio que Inocenta Agressores no Divórcio
Quando o silêncio vira prova contra você: o que a Justiça exige para reconhecer a violência doméstica no divórcio e como você pode se proteger, mesmo antes de sair da relação.
Muitas mulheres só encontram coragem para falar da violência que sofreram no momento do divórcio — quando o silêncio já virou obstáculo jurídico. Este artigo analisa uma jurisprudência emblemática e mostra, com base em decisões judiciais e normas constitucionais, como agir para documentar e comprovar a violência psicológica, moral e patrimonial dentro do casamento. Se você vive uma relação abusiva e ainda não sabe por onde começar, este texto é um ponto de partida — legal e seguro, para retomar o controle da sua vida.
Por Tatiana Fortes – Advogada de Famílias | OAB/RS 78.321
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O silêncio pode sair caro demais
É comum que mulheres em relacionamentos abusivos silenciem por anos, tentando “manter a família unida” ou temendo represálias ainda piores. No entanto, quando o casamento chega ao fim — e com ele a paciência, a saúde e a dignidade — muitas tentam trazer à tona os abusos sofridos. E é nesse momento, no meio de um divórcio ou de uma ação de guarda, que percebem: não têm provas suficientes.
A Justiça brasileira, infelizmente, não caminha com base em suposições. Não basta dizer “ele me agrediu”, “ele me humilhava”, “ele me controlava financeiramente”. É preciso comprovar. Sem boletim de ocorrência, sem laudo psicológico, sem testemunhas ou registros, o relato corre o risco de ser interpretado como uma narrativa isolada, especialmente se a violência não for recente ou se não houver indícios materiais de sua ocorrência.
Foi exatamente isso que ocorreu no caso julgado pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), que agora serve como jurisprudência essencial para mulheres em todo o país.
O caso real: condenação só foi possível porque ela documentou
A vítima, A.C.A.S. de A., conviveu por 36 anos com o agressor. Após o divórcio, continuou morando na mesma residência que ele, convivendo com perseguições, difamações em igrejas, exposição indevida de imagens, ameaças veladas e constrangimentos públicos. Ela desenvolveu problemas de saúde emocional severos, como insônia, hipertensão e ansiedade.
A primeira sentença havia absolvido o réu. Mas a vítima não desistiu.
Entrou com recurso, apresentou relatório psicossocial, depoimentos de filhos e testemunhas, além de provas documentais e laudos. O Tribunal reconheceu a violência psicológica reiterada, aplicou o art. 147-B do Código Penal e o art. 7º, I, da Lei Maria da Penha, fixando pena de reclusão, multa e indenização por danos morais de R$ 10 mil.
Número do acórdão: TJPE – Apelação Criminal nº 0019407-56.2023.8.17.2420
Julgamento: 28/05/2025 – 1ª Câmara Criminal – Rel. Des. Honório Gomes do Rego Filho
A proteção legal existe, mas não basta estar escrita na lei, ela precisa ser sentida na escuta, na acolhida e na ação. E enquanto a mulher não confia no sistema que deveria ampará-la, muitas vezes é o medo, e não a Justiça, que dita o silêncio. Tatiana Fortes
Jurisprudência Constitucional: a dignidade como pilar da punição
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 4424, reafirmou que a Lei Maria da Penha é uma política de ação afirmativa constitucional, essencial para garantir a dignidade humana das mulheres e combater uma histórica desigualdade material. O voto do Ministro Luiz Fux destacou que:
“A impunidade dos agressores acabava por deixar ao desalento os mais básicos direitos das mulheres, submetendo-as a todo tipo de sevícias, em clara afronta ao princípio da proteção deficiente (Untermassverbot).”
(STF – ADI 4424/DF – Rel. Min. Luiz Fux – Julgado em 09/02/2012)
Portanto, não se trata de “privilégio”, mas de correção de um déficit histórico de proteção, sendo dever do Estado agir positivamente para assegurar igualdade de condições — inclusive processuais — às mulheres vítimas de violência doméstica.
Protocolo de Gênero do CNJ: o Judiciário tem o dever de olhar além do óbvio
Outro documento de enorme relevância é o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ (2022), que obriga magistrados e magistradas a:
Considerar os impactos da desigualdade de gênero no acesso à Justiça;
Reconhecer que muitas formas de violência não deixam marcas físicas ou não contam com testemunhas;
Avaliar os casos à luz de contextos históricos e estruturais que naturalizam a subjugação feminina.
Ou seja, quando a mulher consegue apresentar indícios mínimos de violência emocional, moral ou patrimonial, cabe ao Judiciário adotar uma postura cuidadosa e proativa, interpretando as provas com sensibilidade e profundidade.
Ela não cala porque aceita, cala porque teme, porque depende, porque ainda ama. E enquanto o medo, o bolso e o afeto estiverem nas mãos do agressor, a denúncia será sempre um grito engasgado na garganta da coragem. Tatiana Fortes
Violência psicológica: a semente silenciosa da violência física
Um estudo publicado na revista Interface – Comunicação, Saúde, Educação (2007), que analisou 1.242 atendimentos no Centro de Atendimento a Vítimas de Crime (CEVIC ⎯ SC), destaca a violência psicológica como elemento fundamental e inicial da violência doméstica. Entre os registros, 846 tratavam da violência doméstica, abarcando violência física, psicológica, sexual e suas combinações. Deste universo, a violência psicológica esteve presente em todos os casos, frequentemente associada à violência física https://www.scielo.br/j/icse/a/9SG5zGMVt4VFDZtzbX97MkP/ .
O estudo descreve a violência psicológica como:
ações que depreciam a autoestima, intimidam, humilham ou isolam;
comportamentos que controlam o dinheiro, limitam o convívio familiar e social, ridicularizam publicamente, ameaçam e subordinam a vontade da mulher.
Essa violência atua como um processo gradual e silencioso, que mina a autoconfiança, favorece a internalização de culpa e normaliza o abuso, até a culminância da violência física. Como afirmam as autoras:
“A violência psicológica no interior da família, geralmente, evolui e eclode na forma da violência física” https://www.scielo.br/j/icse/a/9SG5zGMVt4VFDZtzbX97MkP/ .
Esse achado reforça a urgência de identificar e documentar os sinais mais sutis de violência desde o início. Se não houver anotações, laudos ou provas, a escalada da violência pode passar despercebida — justamente o que ocorre com frequência, fazendo com que a mulher só perceba o ciclo abusivo quando já está sendo agredida fisicamente ou à beira do divórcio.
Este estudo justifica a necessidade de os primeiros registros ocorrerem quando a violência ainda estiver “embrionária”. Seguir os passos recomendados, como manter um diário, reunir depoimentos, buscar apoio psicológico e registrar boletins, é, portanto, uma estratégia eficaz para interromper o avanço do abuso e prover materiais comprobatórios que salvaguardem juridicamente a mulher.
Quando a mulher entende que nomear a violência é o primeiro passo para sair dela, ela transforma o silêncio em prova e o medo em estratégia, e é exatamente aí que o Direito começa a protegê-la.
Passo a passo: como agir para garantir seus direitos (mesmo antes do divórcio)
Reconheça os sinais de violência
Violência não é só tapa. É grito. É humilhação. É manipulação. É quando ele manda você calar. É quando ele controla seu dinheiro, ridiculariza você ou ameaça tirar seus filhos.
Registre boletins de ocorrência
Ainda que você não deseje separar agora, registre os episódios. Cada B.O. conta. Eles constroem o histórico que pode salvar você mais adiante.
Busque acompanhamento psicológico
Peça ao profissional que registre os impactos emocionais e, se possível, produza um laudo. Isso tem valor probatório elevado.
Tenha um diário documentado
Anote episódios com data, hora, local, testemunhas e o que aconteceu. Guarde prints de mensagens, e-mails, publicações. Tudo isso poderá ser usado judicialmente.
Converse com alguém de confiança e peça para ser testemunha
Alguém que conviva com você e possa, no futuro, atestar o que viu ou ouviu. Depoimentos são fundamentais.
Solicite medidas protetivas imediatamente
Mesmo que ainda esteja casada ou convivendo sob o mesmo teto. A Lei Maria da Penha protege a mulher em qualquer fase da relação.
Consulte uma advogada de família com experiência em violência doméstica
O planejamento jurídico antes da separação é vital para evitar perdas patrimoniais, emocionais e legais.
Saia do ciclo. Mas saia preparada.
Mulheres que tentam fugir da violência sem qualquer suporte ou documentação acabam, muitas vezes, reféns de um ciclo que se perpetua mesmo após o divórcio. O agressor segue controlando a narrativa, os filhos, os bens e até a memória da relação.
Documentar é romper. Registrar é se proteger. Denunciar é se libertar.
Se você vive ou conhece alguém que vive essa realidade, compartilhe este artigo. Que ele seja uma ponte entre o silêncio e a voz. Entre o medo e a liberdade.
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Entre o medo de morrer, a angústia de não saber como viver sozinha e a dor de ainda amar quem fere, muitas mulheres permanecem em silêncio — não por falta de lei, mas por falta de condições reais de romper o ciclo. E é justamente aí que começa o trabalho de quem escuta, acolhe e orienta com estratégia. Tatiana Fortes
Bibliografia jurídica e normativa
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
BRASIL. Código Penal. Art. 147-B. Inserido pela Lei nº 14.188/2021.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília: CNJ, 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4424/DF. Relator: Min. Luiz Fux. Julgado em 09/02/2012.
https://www.scielo.br/j/icse/a/9SG5zGMVt4VFDZtzbX97MkP/ visitado em 22 de junho.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO. Apelação Criminal nº 0019407-56.2023.8.17.2420. Rel. Des. Honório Gomes do Rego Filho. Julgado em 28/05/2025.