Do Silêncio ao Contrato: A Inclusão do Homem no Enfrentamento à Violência de Gênero através do Planejamento Jurídico-Afetivo

O presente artigo propõe uma análise jurídico-sociológica da violência contra mulheres e meninas sob a ótica da corresponsabilidade masculina e do planejamento jurídico-afetivo como estratégia de prevenção. Amparado em dados do Instituto PDH (2024), Instituto Avon e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o estudo defende que a construção de novas masculinidades e a responsabilização afetiva, materializadas por meio de contratos familiares e cláusulas de diálogo, constituem ferramentas legítimas do Direito das Famílias para mitigar a violência de gênero e reeducar vínculos. A advocacia, nesse contexto, assume função pedagógica e transformadora, conciliando afeto e norma, emoção e razão, justiça e prevenção.

1. Introdução

Conversar com homens sobre violência não é apenas uma pauta social — é uma convocação ética e jurídica. O Brasil ocupa a quinta posição mundial em violência contra a mulher (Agenda 2030, 2022), registrando duas mulheres estupradas a cada minuto e sete em cada dez casos dentro do lar (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2023). Esses dados desnudam um fenômeno estrutural: a violência é produto de uma cultura que naturalizou o controle masculino e o silenciamento feminino.

A tese central deste artigo é a de que o diálogo com os homens, mediado por instrumentos jurídicos e educativos, representa uma ferramenta de prevenção e reconstrução. A proposta é conceituar e fundamentar o que se denomina planejamento jurídico-afetivo — uma metodologia que integra responsabilidade emocional, pactuação jurídica e reestruturação patrimonial sob a perspectiva da igualdade de gênero.

A abordagem se desenvolverá em quatro etapas:
a) A análise do silêncio masculino e da cultura do controle como pilares da masculinidade hegemônica;
b) A introdução da responsabilidade afetiva como princípio jurídico emergente;
c) A apresentação do Direito das Famílias como campo de reconstrução social por meio de instrumentos contratuais;
d) A defesa do planejamento jurídico-afetivo como paradigma contemporâneo de justiça restaurativa e prevenção da violência.

2. O Silêncio Masculino e a Cultura do Controle

A violência contra mulheres é, antes de tudo, uma questão de poder. A noção de masculinidade hegemônica (CONNELL, 1995) descreve o modelo cultural que legitima a dominação masculina e reprime a vulnerabilidade, o diálogo e o cuidado. Nesse contexto, a raiva torna-se a única emoção socialmente autorizada aos homens, e o silêncio, o principal instrumento de manutenção do controle.

Esse padrão educativo produz não apenas agressores, mas também observadores omissos. Conforme o Instituto PDH (2024), grande parte dos homens nunca conversou com mulheres sobre assédio ou abuso, nem reconhece comportamentos abusivos sutis — como o controle patrimonial, a vigilância digital e a manipulação emocional.

A violência patrimonial, em especial, é uma das expressões mais perversas do controle: ela aprisiona a mulher por meio da dependência econômica, do bloqueio de acesso a bens e da ocultação de informações financeiras. É a forma “invisível” de violência que antecede a física e a psicológica, sustentando o ciclo de submissão.

Portanto, a transformação cultural requer não apenas punição, mas educação jurídica e emocional dos homens, conduzida de forma técnica e humanizada — um desafio que o Direito das Famílias contemporâneo deve assumir com coragem e método.

3. Da Responsabilização à Responsabilidade Afetiva

A mera responsabilização penal dos autores de violência, embora necessária, é insuficiente. É preciso avançar para uma responsabilidade afetiva, conceito que transcende a moralidade e ingressa no campo jurídico.

A responsabilidade afetiva decorre dos deveres conjugais previstos no art. 1.566 do Código Civil, especialmente os de lealdade, respeito e assistência mútua. Sua violação — seja por omissão emocional, manipulação psicológica ou negligência nos deveres parentais — configura quebra de confiança e pode gerar consequências jurídicas, como o reconhecimento da culpa na dissolução conjugal e a reparação por danos morais.

Enquanto a responsabilidade civil busca reparar danos materiais e morais, a responsabilidade afetiva visa restaurar o equilíbrio relacional e emocional. Ela inaugura um novo olhar sobre o Direito das Famílias, no qual o afeto não é apenas elemento subjetivo, mas princípio normativo que impõe deveres de cuidado recíproco.

Nesse sentido, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero (CNJ, 2021) reforça a necessidade de interpretar as condutas familiares sob a lente da desigualdade histórica entre homens e mulheres, permitindo ao magistrado reconhecer dinâmicas abusivas que não se enquadram na tipificação clássica de violência.

4. O Direito das Famílias como Ferramenta de Transformação

O Direito das Famílias, em sua vertente contemporânea, deixou de ser mero campo de litígio e tornou-se espaço de reconstrução social. O advogado de famílias, nesse contexto, atua como arquiteto de relações, desenhando contratos e pactos que traduzem o cuidado e o respeito em cláusulas objetivas.

4.1. Advocacia Preventiva e Planejamento Jurídico-Afetivo

A advocacia preventiva propõe que os casais, ao invés de se protegerem apenas contra o fim, planejem o percurso. O planejamento jurídico-afetivo integra aspectos patrimoniais, emocionais e éticos, oferecendo segurança jurídica e emocional a todos os envolvidos. Trata-se de uma advocacia que educa, previne e transforma — substituindo a lógica da reação pela lógica da precaução.

4.2. Cláusulas de Diálogo e Cuidado

Os contratos de convivência, pactos antenupciais e repactuações conjugais podem conter cláusulas de diálogo, como:

  • obrigação de participar de terapia de casal em caso de crise;

  • previsão de reuniões periódicas de alinhamento financeiro;

  • compromisso de comunicação prévia antes de grandes decisões patrimoniais.

Essas cláusulas reforçam a ética da corresponsabilidade e previnem conflitos que, quando não mediados, podem escalar para a violência.

4.3. Contrato de Parentalidade Consciente

Mais do que regular guarda e alimentos, o contrato de parentalidade consciente estabelece deveres emocionais e educativos: presença nas consultas médicas, participação ativa na vida escolar, acompanhamento psicológico dos filhos e divisão equilibrada das tarefas parentais. É um pacto de compromisso contínuo com o desenvolvimento emocional e moral das crianças — fundamento para quebrar o ciclo intergeracional da violência.

5. Conclusão

Este trabalho partiu da análise dos dados alarmantes da violência de gênero, identificando suas raízes na cultura do silêncio e do controle masculino. A partir dessa constatação, propôs-se a responsabilidade afetiva como princípio jurídico emergente e o planejamento jurídico-afetivo como ferramenta concreta de prevenção e reconstrução.

Demonstrou-se que a advocacia familiar, quando humanizada e estratégica, é capaz de converter a dor em aprendizado e o conflito em contrato. O diálogo com os homens, mediado por instrumentos jurídicos, é não apenas possível, mas urgente.

Amar também é planejar.
E proteger o que se construiu é, ainda, a mais nobre forma de cuidado.

Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: Informação e documentação – Referências – Elaboração. Rio de Janeiro: ABNT, 2018.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. Brasília: CNJ, 2021.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2023.

INSTITUTO PDH. Como conversar com homens sobre violência contra meninas e mulheres. 2. ed. São Paulo: Instituto PDH, 2024.

INSTITUTO AVON; LOCOMOTIVA. O papel do homem na desconstrução do machismo. São Paulo: Instituto Avon, 2016.

Posts Similares